07 janeiro 2010

#10



E de repente já não sabia se ainda chovia lá fora. Já nenhuma marca me trazia de volta à Terra, escolhia deliberadamente ignorar os sobretudos que pingavam e os chapéus de chuva que serviam de bengala e o som irritante da borracha contra o chão que a mulher limpara inutilmente minutos antes. Não sabia de onde saiam as carruagens nem compreendia o cheiro adocicado espalhado por todos os corredores. De repente, só ouvia passos: passos arrastados, passos apressados, passos hesitantes, passos que formavam um exército lento na minha cabeça, que pisavam o chão que ficava agora nos meus ouvidos, sempre o som da borracha a espezinhar o meu espanto. Ainda só tinham passado segundos e já eu reconstituía o movimento em câmara lenta, tentando sabê-lo já de cor, antecipando todas as tardes a recordá-lo: as pernas determinadas, a expressão indecifrável, no cabelo o que pareciam restos de orvalho, as mãos enfiadas nos bolsos.

E de repente os nosso olhares cruzaram-se e não tive direito a mais do que um desconforto mudo, um espanto logo transformado em incómodo menor e foi por uma unha negra que não desfaleci logo ali, aterrando na poça que crescia debaixo dos meus pés há tanto tempo. Agora sabia que chovia. Pelo menos, era isso que me anunciavam os olhos, era contra essa água que engolia muitas vezes repetidas e em seco, era eu quase a sucumbir ao vexame da indiferença. E depois maldisse a minha sorte, amaldiçoei o momento em que deixei de contar os ladrilhos da estação para levantar a cabeça e contemplar o desastre caminhando rapidamente à minha frente. E os passos ribombavam cada vez mais alto e agora começava a ouvir vozes, um estranho dialecto feito apenas da minha vergonha e subia-me um agudo sentido de ridículo às fontes e a boca começava a saber-me mal. Podia chover lá fora, podia cair o maior temporal de que havia memória que nada me havia encharcar mais do que a intempérie que sentia aproximar-se cá dentro: semanas de baixas pressões, dias de cama a escapar a sistemas frontais e as nuvens feitas em chuva e a chuva feita em neve e tudo gelado por dentro e a tua imagem como um fogacho lá fora, trémulo e inacessível.

E de repente ouvia o comboio que partia e eu ainda incapaz de largar aquele pedaço de chão e tu, em alguma carruagem cheia de gente, suspiravas de alívio, talvez. Não hei-de voltar a esta estação.

15 dezembro 2009

#9

Faço questão de os contar sempre, como se fosse a primeira vez que os percorresse. Divido-os mentalmente em percursos, em troços, em metas e acompanho religiosamente a sua progressão no contador.Também os divido em paisagens: através de canaviais, ladeados por campos de arroz, torrados pelas intempéries e queimados pelas geadas que caem para estes lados. Conto-os sempre e no entanto nunca sei quantos são. A sua medida não é medida da minha tristeza nem das minhas saudades nem da vontade que tenho de regressar.

Arranjei superstições para todos os momentos em cruzo pontes sobre ribeiras, para as rectas intermináveis rodeadas de mármore e de urzes, para os coelhos que vêm às vezes espreitar e arriscar a vida. Admiro-me sempre com alguém que caminha no escuro, sem reflector nem nenhum sinal que possa denunciar a sua presença, tomando a Lua como seu único guia. E cada vez tenho mais pressa, e a cada retorno mais me afasto do meu local de partida, olhando-me fora do meu corpo, uma mulher pequena num instável banco de pele. Já atravessei tempestades negras e já me furtei a raios que terminariam apenas a escassos metros de mim, já senti o irrespirável calor e já me vi debaixo de assustadores bátegas de água que me faziam temer o dilúvio.

Mas no caminho vejo charcas e vacarias abandonadas, pombais onde retornam os bichos de competição, aquele verde que brota da terra de mansinho quando chega o frio, riachos que serpenteiam entre campos de trigo, bancas de espargos e melancias onde o tempo se dispersa, pinheiros mansos carregados de pinhas, vinhas acobreadas a perder de vista, velhos na soleira da porta ou encostados a cajados e tudo fica suportavelmente mais perto. São milhares de metros em meditação, em arrumação de ideias e depois finalmente cheguei e todos os outros caminhos ficam para trás.

24 novembro 2009

#8

E eu, que sonhava quando era pequena, que havia de entrar na igreja pelo braço do meu pai e que iria brilhar tanto que os convidados não aguentariam olhar-me de frente e depois deixaria a cerimónia num carro antigo, polido e encerado a rigor e toda a gente iria comentar olha que linda que ela vai, olha-me o luxo daquele casamento, já não se fazem noivas assim. Atrás de mim, correria uma multidão de madrinhas, que o véu precisava das mãos experientes de solteiras e casadas, enfiadas no mesmo modelo em tons de carmim que eu tinha idealizado há já mais anos do que os que me consigo lembrar. E elas soltariam gritinhos histéricos quando ele me olhava (o tempo todo, portanto) e quando os meus olhos se marejavam e ele aproveitaria para dizer-me mais uma vez É assim que te quero, amor. Sentiria a mão dele apertando a minha, primeiro num aperto tímido, depois com a força proprietária e determinada de quem está certo do que sente, de quem anseia pelo momento de gravar a tinta essa certeza.

Mas ele levou-me pela sua mão suada e dispensou outra companhia. O vestido que eu havia prometido à minha mãe nunca sujar arrastava-se, ferido, pela calçada imunda. O fotógrafo já estava enfadado porque ainda tinha mais três casamentos para fazer e nenhum carro para transitar entre eles. Entre os três, não achámos um cenário mais bonito que uma montra de sevilhanas para fazer as nossas fotos - como se os folhos e algum sapateado pudessem encher uma imagem de algum fulgor. Não era com isto que tinha sonhado uns dezoito anos da minha vida mas nunca ninguém me tinha ensinado a dizer que não. Era o dia do meu casamento e só se falava em poupar. Só me restava encolher os ombros e pensar na outra: uma lua de mel em casa é melhor que um coração para sempre estropiado.

01 novembro 2009

#7


Tinha sempre esperança de a encontrar. Já se tinham passado quarenta e seis dias mas continuava a ter esperança de a encontrar naquele mesmo sítio. Eu podia ter riscado os dias no calendário da cozinha mas, mesmo sozinho, acho que tinha vergonha de ser descoberto. Era demasiado patético, até mesmo para mim e por isso resolvi criar o hábito de estar naquele sítio todos os dias à mesma hora, escolhendo os mesmos números, como se essa chave mágica a pudesse fazer passar outra vez por mim, uma imperatriz afastada dos seus aposentos faustosos.

Calhava naquele dia sentir-me mais desesperado do que o normal, um homem feito num fato escuro, o cabelo cuidadosamente domado com a ideal noz de brilhantina. Ninguém poderia imaginar que chegava a casa e o fato mantinha-se, mesmo sentado no sofá em frente a qualquer programa de televisão, esperando visitas que nunca chegavam. Vidrado na ideia de ser apanhado de surpresa e obcecado com as rugas nas calças com vincos, tentava sempre sentar-me o mais direito possível, uma postura de bailarina pelos sofás e pelas cadeiras desperdiçada numa casa onde ouvia constantemente o eco dos meus passos. Nunca ninguém usara a campainha. Mas naquele dia, lembro-me que era o vinte e três e faltariam uns dois dias para receber, resolvi parar ali. E, mesmo sendo eu um homem com azar, sentia uma vontade inexplicável de tentar a sorte e sentia, de repente, formar-se na minha cabeça a chave que havia de jogar em todas as semanas até aqui. Cinco onze vinte e dois vinte e quatro e trinta. E sentia isto com uma daquelas certezas que vêm sabe-se lá de onde, uma onda que me impelia a mão para a esferográfica, desenhando as cruzes com determinação e sem pausas.

E depois, no momento exacto em que a minha mão deixava a sorte pelo boletim e a cabeça se voltava a erguer, contemplando uma decisão que não conseguia completamente compreender, senti-lhe o perfume. Eu, que não sei como é que de madeira e lavanda e flores de laranjeira se faz uma fragrância, soube de repente que era aquilo que queria cheirar todas as manhãs e procurei a origem do perfume. E ali estava ela, uma rainha no seu porte, com o seu pescoço esguio e a pele sempre resguardada do Sol, um olhar altivo como se pisasse um chão diferente do resto dos mortais. Vestia um tailleur vermelho muito apertado, como se se inflingisse alguma penitência e precisasse de um espartilho para se sacrificar. Tentava respirar o menos possível e, enquanto pôde, evitou que os seus olhos descansassem nos meus. Os saltos muito altos criavam a ilusão de que teria umas pernas intermináveis mas eu consegui adivinhar-lhes o fim porque o meu desejo era mais rápido que os meus olhos e já lhe trepava pernas acima, tentando adivinhar-lhe a renda da roupa interior. E o cheiro, céus!, o cheiro que me mantinha cativo daquela figura que, veria depois, trazia um velho senhor pelo braço.

Quando finalmente se permitiu reparar na minha figura, um homem de meia idade embasbacado com a beleza de uma desconhecida, trancou o seu olhar no meu, em pura posição de desafio. Ciente da sua influência, usando a sua beleza para deslumbrar a rua inteira, escolhia perturbar-me com o castanho dos seus olhos pequenos e dominadores, mantendo-me em suspenso durante todo o tempo que achou necessário. E eu, que nunca antes tinha sido manipulado a bel-prazer de uma mulher, eu que sempre conquistara antes mesmo de me revelar, perecia ali à porta daquele quiosque. Se não sobrevivesse ao embate, a minha lápide diria Aqui jaz F., homem de muitas conquistas, fulminado apenas por um olhar. O homem pegou-lhe no braço e arrastou-a consigo rua fora, não sem antes ela me deitar um olhar de desdém.

É por isso que ainda hoje espero por ela. Às vezes acho que, se me demorar um pouco mais a inscrever a chave no boletim, ela há-de chegar e não me há-de poupar à sua superioridade. E eu, subjugado por aqueles olhos cerrados e pela cintura de vespa, amordaçado pelas palavras que nunca lhe poderia dirigir, suando com a ideia de a poder apenas cumprimentar, apenas sorriria e ela havia de corar. Por isso, venho todos os dias. Amanhã serão quarenta e sete, risco no meu calendário mental.

22 outubro 2009

#6

Um maço de Winston está ao lado dum poster do Cristiano Ronaldo dobrado em quatro partes desiguais. O resto do pão descansa, esboroado, sobre uma mesa onde não foi estendida uma toalha e junto a uma navalha muito velha e dobrada sobre si mesma. Dois cães de louça descansam na sala ao lado, quase espreitando para adivinhar ao que vêm estes dois estranhos. Ao lado de um retrato muito velho de uma senhora com uma trouxa na cabeça, alguém pendurou a imagem de um oragotango, um pedaço de papel velho recortado de uma revista. O silêncio que se faz sentir lá fora é quase sepulcral e, não fossem as tímidas indicações na estrada até aqui, ninguém diria que tínhamos atravessado a fronteira e estacionado em plena raia espanhola.

É como se o sítio tivesse sido, desde tempos imemoriais, dividido por uma linha de fronteira imaginária. Os caprichos da mão humana são os responsáveis pela separação (aqui quase imperceptível) entre Portugal e Espanha, oficial e pormenorizadamente cartografada mas fisicamente pouco compreensível: o mesmo calor de um e de outro lado da fronteira, o mesmo ar abafado que desce em direcção ao alcatrão e que ocupa todo o espaço, impedindo-nos de respirar, o mesmo solo seco e dourado rodeando casas abandonadas e entregues à ruína. Apenas a (maior) largura da estrada que agora percorremos nos lembra que chegámos a Espanha porque partilhamos tudo o resto – as serras e os barrancos, os pinheiros ainda por crescer, as ribeiras caprichosas, o mesmo grau de isolamento.

O sítio nasceu em torno de um cruzamento ou este foi o resultado do cauteloso juntar de casas: não serão mais do que umas dez, se contarmos com o café quase novo em folha, dispostas de forma algo irregular e terminado num inexplicável parque infantil com vista para mais serra. Rompendo o branco da cal destas paredes, uma ou outra oliveira que se atreveu a permanecer, um canteiro viçoso e encantador que parece ter crescido numa zona húmida e enxertado nesta terra sequiosa. As flores são tantas e tão mimosas que é impossível não parar durante breves segundos observando, perguntando em voz baixa como foi possível vingarem num solo aparentemente estéril. A vegetação completa-se com as heras de plástico que cobrem as paredes do novo café, criando a ilusão da vivacidade aos condutores que se decidem por este lado do cruzamento. Camuflada entre vasos e as grades de uma varanda, está sentada uma senhora idosa, vestida de preto, que nos acompanha quase sinistramente com o olhar. Da varanda e da nossa vigilante não se solta um único som, um supiro mais profundo, um grito de uma televisão ignorada, um desabafo motivado pelo calor.

Dizem-nos numa tasca, em que a entrada é coberta por uma latada que tenta simular a frescura da sombra noutras paragens, que é mesmo a última casa, que podemos entrar, já que a porta nunca está fechada. Vai o neto à nossa frente, empolgado com as visitas, portador das notícias. Quando desviamos as fitas de plástico da entrada, ainda a conseguimos surpreender, minúsculo corpo gasto pela idade coberto pelo luto ainda fresco, os cabelos brancos num doce desalinho de quem não tem tempo para se preocupar com miudezas. Fala muito alto, como se a idade lhe tivesse roubado também a astúcia de uns ouvidos em sentido, habituada a fazer-se anunciar entre penhas e barrancos isolados de outras vozes e de quaisquer vestígios de civilização. Enquanto falamos sobre o grande fogo que lhes consumiu os haveres e que mudou a vida de outras gentes que faziam gosto em viver perdidas serra adentro, os pássaros que guarda em gaiolas perto da porta lembram-nos da sua presença. São umas quatro gaiolas, desorganizadas sobre a máquina de lavar roupa, exactamente em frente a alguidares empilhados onde descansam alguns tomates directamente nascidos deste chão.

O neto e a avó já não conseguem escolher entre o português e o castelhano. O que falamos naquela cozinha despojada de decoração mas transbordante de utilidade é um dialecto de fronteira, uma mistura de vocábulos do país onde os hospitais são coisa de gente séria, onde o rigor não é confundido com falta de vontade e as palavras do país que, incapaz de olhar para dentro de si mesmo, enviava enlatados às vítimas dos fogos, homens e mulheres com mais de sessenta anos, habituados a viver do que a terra lhes dava e incapazes de manejar um abre latas. É quase natural que ela nunca tenha pensado em regressar, estando sob a alçada de um sistema que não esquece mesmo as aldeias mais recônditas e onde as relações são, muitas vezes mais humanas.

Ela insiste em oferecer-me um vaso onde repousa um repolhudo manjerico e mostra-me, ingénua, como posso absorver-lhe o cheiro. Nós decidimos partir, para que o filho possa também almoçar tardiamente, antes de pegar na mota e se fazer de novo à estrada, procurando a próxima festa de Verão. Quando os nosso pneus voltam a pisar o nosso país, a solidão desta gente continua a mesma, as estradas de terra batida continuam desertas e as pontes sobre as ribeiras tranquilas. E eu olho para trás, ainda coma sensação de que há Alentejo também para lá daquela fronteira.

01 outubro 2009

#5

Hoje é dia de usar a flor. Se tivesse sabido mais cedo, tinha escolhido os lugares com cuidado e conseguido bilhetes para a sombra. Ele sabe que hoje é dia de usar a flor porque no dia em que anunciavam a data pelo megafone, entrou-me casa adentro, esbaforido e queimado pelo pico do Estio, e eu levantei-me sem falar para a procurar na gaveta das recordações. Nem sei se ficou contente por imaginar-me em traje de festa mas acho que não - ele já sonhava fazia muito com o dia em que havia de voltar às lides.

Já lavei e escovei o cabelo tantas vezes quantas a minha mãezinha me ensinou. Nos dias de faena, ela engomava a roupa longas horas antes de sair para que a casa pudesse absorver o cheiro bom a roupa lavada e o vapor do próprio ferro de engomar. Depois, pendurava tudo na porta de um armário e parava por momentos, embevecida, a contemplar o resultado da sua dedicação. Não sei do xaile mas, em calhando, o calor terá amansado e os lugares ao Sol estarão cobertos pelas nuvens que já andam a prometer há tantos dias. Mas a flor já a encontrei, misturada com o resto da quinquilharia, esquecida entre calendários velhos, receitas médicas, isqueiros dele e canetas que vou juntando nas campanhas eleitorais. É a única gaveta que destoa - as restantes são perfeitos exemplos da minha personalidade meticulosa, do esmero que herdei da mãezinha. Por sorte, nunca tinha sido ele a fazer limpeza, senão a flor teria acabado certamente misturada com o resto do lixo.

Eu queria sentir o peso do cabelo preso atrás do pescoço, eu queria sentir-me como aquelas miúdas que aprendem sevilhanas e dançam nos saraus e fazem olhinhos em todas as direcções., embriagadas pelo seu próprio poder de atracção. E queria que ele se lembrasse da razão porque partilhávamos uma cama, uma mesa e uma herança, em vez de amar-me apenas em modo automático. Mas eu imaginava o que havia de acontecer logo: ele deixava-me à porta, com valiosas indicações sobre onde encontraria as irmãs dele. Eu atravessaria as portas da praça com pouca segurança e nenhumas capacidades de sedução. Ele ficaria com os homens, retomando as cervejas da tarde e despertaria apenas desse torpor quando sentisse que um forcado me namorava a flor. As irmãs lançariam o habitual olhar de reprovação, enquanto ele era consumido pelas chamas vorazes do ciúme. E eu, balançando entre o orgulho de ainda produzir esse efeito e a vontade de o multiplicar até à exaustão, deixaria a praça meio triunfante entre o restante mulherio, ocupado a dissecar outras desgraças.

Mas ele acabou de entrar e, sem parar na cozinha, sussurrou-me ao ouvido A noite hoje é nossa, Maria Isabel. Três anos é tempo demais - perdi o treino para amar o meu marido. E o que mais me apetecia agora era que ele continuasse a esquecer-se de mim.

22 setembro 2009

#4

Eu sempre disse que um dia havia de provar que tenho razão. Que todas as noites passadas acordada à espera de ouvir a chave dar três voltas e meia, a chave a tinir contra o metal frio da fechadura, a chave a riscar mais uma vez a madeira da mesa da entrada tinham valido a pena. Que os silêncios depois de jantar, espalhados entre a cozinha e o sofá da sala, os silêncios dos Domingos em que podia correr entre nós uma violenta corrente de palavras, os silêncios sobre a areia da praia e entre a geleira e o saco das raquetes fariam, finalmente, sentido.

Não me bastavam já as suspeitas levantadas pela mulher da limpeza, que me alertava sempre subtilmente no final da semana para as manchas de baton, perguntando-me se era eu a dona daquela camisa e que me aguçava ainda mais a curiosidade quando me acusava de estar constantemente a mudar de perfume. Não eram suficientes as chamadas do escritório, perguntando por ti em pleno horário de expediente, obrigando-me a mentir com quantos dentes tenho para evitar a humilhação maior. Acusavas-me de já não saber nada sobre ti, como se fosses ainda a pessoa que se tinha mudado para esta casa naquele dia vinte e cinco de Setembro, sem qualquer bagagem, a não ser a emocional.

Na verdade, não tinha começado a ressentir-me da sensação de saber o que se passava. Queria ser como as outras e confrontar-te histericamente à porta de casa ou batendo a porta do carro, para que toda a vizinhança pudesse ouvir e tomar partido - certamente, iriam escolher o meu lado. Desejava receber a chamada que te denunciaria, a voz lânguida e quente perguntando pelo teu nome sem qualquer pejo, multiplicando as chamadas não atendidas pela noite fora. Planeava envolver a tua família num escândalo sem precedentes, aproveitando uma época festiva qualquer e denunciando a tua falta de escrúpulos perante os únicos que, conhecendo-te bem, te poderiam realmente amar. Mas não encontrava em mim o poder devastador das reacções intempestivas, apesar de engolir em seco de cada vez que te imaginava noutros braços, os teus lábios noutra boca, a tua atenção partilhada sem pré-aviso.

Mas eu entendia-te para além disso e entendia-me para além de toda a impulsividade. A cada passo teu na direcção oposta a nós eu tranquilizava-me secretamente porque sentia o formigueiro viciante de compreender o que se passava. A minha despedida estava preparada num envelope, onde guardava também o poema com que tinhas coroado a nossa primeira noite. Não fazia era ideia de que seria a tua amada tecnologia a tramar-te. Mas quando recebi a vossa fotografia no parque, suspirei de alívio porque sempre soubera e agora tinha finalmente luz verde para descansar.

17 setembro 2009

#3

Três passos curtos separavam a vida da fantasia que vivia dentro de portas. Às vezes as portadas mantinham-se apenas entreabertas e era como se, secretamente, pudesse esquecer-me de que cometia a maior transgressão de que me lembrava. Quando o ar fresco serpentava entre os pedaços de tule branco, que um dia se tinham passado a chamar de cortinas, deixava que as fachadas meio decrépita dos prédios em frente se intrometessem nos nosso segredos de alcova e que a sua sombra se estendesse lentamente sobre nós durante as primeiras horas da tarde. Silêncio, parecíamos dizer, mesmo quando a vontade era de soltar gritos estridentes ou lânguidos gemidos de satisfação. O silêncio só era possível depois de fechar a porta atrás de mim e, mesmo aí, nada podia calar os botões que fazíamos cair no chão, os fechos que encravavam à vez, a ânsia com que nos olhávamos à pressa.

Havia dias em que o vento nos fazia fechar a janela e outros em que pensávamos que as grades dariam finalmente de si e tombariam, cansadas de montar guarda àqueles segredos, vergadas por gerações mais puras antes de nós. Mas elas ficavam, tal como nós, mesmo quando prometíamos que daríamos ouvidos aos nossos censores, mesmo quando ambos acusávamos o desgaste da intimidade em segredo, dos favores da carne trocados sem permissão. Ano após ano, esperavas pela chegar da Primavera e, buscando inspiração na flora do quintal, pintavas as grades e fazias florescer as flores de ferro que nunca cheguei a elogiar-te. Livravas a pedra dos parasitas do tempo frio e tudo brilhava oficialmente no meu regresso. A fachada imaculada supostamente aliviava a nossa consciência e purificava-nos as intenções, sei-o hoje mas falhei em reconhecê-lo em tantas tardes milimetricamente planeadas.

Nunca chegaria sem avisar. Mesmo que o fizesse, contava com a sinalética combinada e, à vista das portadas completamente cerradas, sabia que devia seguir sem tocar no ferrolho do portão. Mas se, pelo contrário, as portadas tocassem as paredes nas suas margens, então o meu corpo era invadido por um frémito que nunca conseguiria nomear, por uma corrente eléctrica cuja sensação nunca poderia partilhar com ninguém porque tinha sido esse o nosso compromisso. Sentiria a pulsação de imediato a acelerar, uma forma boa de taquicardia que me consumia cada vez pisava aqueles dois degraus e um dia havia de acabar por me matar. De desejo.

15 setembro 2009

#2

Silêncio. Eu já não sabia muito bem onde a tinha enterrado. Pensava que mentalmente tinha cartografado a cena toda: o tamanho exacto do buraco, a quantidade de terra que tinha precisado para a fazer desaparecer, os passos entre local que me incriminava e o novo banco de madeira. Eu pensava que sabia tudo de cor, pensava que chegaria ao sítio e, com um sorriso de antecipação, arregaçaria as mangas e começaria a esgravatar a terra. Por isso é que este silêncio todo me oprimia.

Medi os meus passos cuidadosamente - qualquer falha podia denunciar o amadorismo do meu plano. Assegurei-me várias vezes de que não passava por ali ninguém. Era um cuidado desnecessário, este. A noite tinha descido há muito sobre a fonte dos Amores e eu contava com a cumplicidade da serra e com a solidão daquela bica para a recuperar. Ainda não tinha decidido se a destruiria para eliminar todos os resquícios da infelicidade que já me tinha trazido até ali ou se, inspirada pelos assobios calmantes do vento que galgava a serra, a resgataria da terra, trazendo de volta um passado que antes tentara enterrar. Não tinha mais do que as minhas mãos para revolver terra e raízes e lixo acumulado com o impiedoso avançar do tempo: trazer uma pá ou uma enxada seria demasiado incriminatório e espalhafatoso. Por sorte, mantivera as unhas compridas o suficiente para iniciar os trabalhos de resgate. Não era este o desfecho que tinha imaginado há tanto tempo mas sentia-o como uma obrigação, uma necessidade latente de remexer no passado, a única coisa que nunca tinha conseguido enterrar.

O primeiro contacto com a terra demonstrava que algo tinha corrido mal. Já tinha cavado um buraco fundo, de perímetro bastante alargado mas dela nem sinal. Imaginava que a sucessão das estações tivesse tratado de adensar as camadas de terra e que as obras recentes pudessem também contribuído para aumentar a dimensão daquela sepultura. Mas o movimento nervoso das minhas mãos, a terra que nunca parecia terminar e o silêncio imposto pela noite e pela ausência dos eucaliptos diziam-me que algo tinha corrido mal e que talvez fosse já tarde demais. Não queria desistir. Não queria aceitar que a pudesse ter perdido desta maneira ou que alguém a pudesse ter descoberto antes de mim. A velocidade das minhas mãos aumentava à medida que entendia que o esforço que fazia era em vão, que não importava o tamanho do buraco que ia escavar - ela tinha simplesmente desaparecido.

Quando a terra se acumulava já à minha volta em quantidades alarmantes, olhei para trás para me certificar que ainda operava na solidão. Conseguia distinguir lá bem em baixo as luzes da cidades que, tímidas, me lembravam de uma plateia silenciosa e tremeluzente perante o meu desespero. Não conseguia sequer aceitar que o restaurado candeeiro de metal que me alumiava a procura pudesse servir de testemunha do meu falhanço. Sem repor a terra no seu lugar, sem me preocupar em apagar os vestígios da minha procura infrutífera, comecei a descer pela estrada, em direcção à cidade. Completamente ofegante e a cegar com a violenta frustração, acelerei o passo o mais que pude. Depois de perder a caixa onde um dia depositara a minha capacidade de amar, hoje era outra vez dia de jantar solitário frente à televisão.

09 setembro 2009

#1

Às vezes tenho medo de me sentar, especialmente nos dias em que ele ainda não teve tempo de varrer o chão e o chão é feito de longos cabelos pretos e restos de cabelos que ele apara do pescoço dos velhos. Nunca quis ver os meus cabelos misturados com os outros. Sempre achei que era uma questão de princípios que o meu cabelo não fosse varrido no meio de tantos outros descuidados, ralos, enfraquecidos. Achava-me acima de qualquer penteado e quaisquer ampolas para a queda. Achava que os filamentos que tornavam a minha cabeça em algo longe das carecas e dos cabelos escassos a esticarem para além do aceitável mereciam um pouco de respeito.

Nos dias em que ele não varria, preguiçoso e tomado pelo calor que se esgueirava pelas frestas da porta, eu sentava-me com algum asco. Mas não conseguia evitar o sorriso quando ele me perguntava se queria algum corte moderno. Ele, que me rapara o cabelo na altura da tropa e a quem continuara a confiar os meus caprichos capilares, não desistia da ideia de me tentar mudar. E eu não desistia da ideia de que ele percebia pouco de modas e que lhe faltava a modernidade dos grandes salões, especialmente os utensílios esterilizados e estilizados, a corte de ajudantes inúteis, os estagiários a quem não confiaria nem uma cabeleira. E com isto pedia-lhe que fizesse o de sempre, que continuasse a fazer com que as mulheres tivessem vontade de perder os seus longos dedos entre a minha melena alinhada e ele voltava a cair em si, orgulhoso de ter um papel nas minhas conquistas.

Ele aproveita-se da minha fome de conversa e da sua sinuosa linha de raciocínio para me pôr a falar e quase a confessar os pormenores mais sórdidos das minhas conquistas. Só que normalmente eu acordo daquele transe a tempo, daquela nuvem de sons que me confunde - a tesoura a passar-me perto das orelhas, abrindo e fechando, as navalhas escanhoando outras orgulhosas figuras masculinas, os jornais que folheavam atrás de mim, a ocasional rouquidão do secador. E por instantes, tenho perante mim a nítida imagem da pessoa que eu sou, não reflectida no espelho à minha frente, mas repetida convencionalmente em todos os homens que se sentam a meu lado, sentindo-se repugnados pelo tufo de cabelos que se demora por ali. Talvez um dia ele nos agradeça a contribuição para as almofadas com que deve decorar o sofá.